O Movimento
Por Ivan Vilela
No início dos anos 60, em Belo Horizonte (MG), jovens músicos começam a se encontrar na cena musical da capital mineira. Eles produziam um som que fundia as inovações trazidas pela Bossa Nova a elementos do jazz, do rock’n’roll – principalmente The Beatles –, de música folclórica dos negros mineiros e alguns recursos de música erudita e música hispânica. Nos anos 70, esses artistas tornaram-se referência de qualidade na MPB pelo alto nível de performance e disseminaram suas inovações e influência a diversos cantos do país e do mundo. E é sobre esses músicos, sobre o Clube da Esquina, que falo agora.
Inicialmente representado por Milton Nascimento, Wagner Tiso, Fernando Brant, Márcio Borges, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta e Paulo Braga, a turma mineira foi agregando uma constelação de instrumentistas e compositores. Ainda que juntos tenham apresentado uma nova perspectiva musical, o Clube da Esquina não foi visto pela mídia e pelos estudiosos como um movimento. Mas, sem sobra de dúvida, se constituiu apropriando-se de um alicerce oferecido por diversos movimentos musicais e culturais pregressos.
Heranças dos anos 50
Os anos 50 e 60 do século 20 foram marcados por profundas modificações de ordem econômica, política e, conseqüentemente, social em todo o mundo. O movimento da Contracultura iniciado pelos Beatniks nos EUA e o existencialismo francês propiciaram mudanças no meio da juventude do Ocidente e as manifestações culturais refletiam esses novos tempos, em especial a música.
Em 1958, a Bossa Nova surge como uma nova alternativa estética à música popular brasileira. Ela propõe um novo uso melódico das tensões harmônicas e uma abordagem orquestral mais enxuta, tendo o violão – junto à voz – novamente como o centro da cena. E resgatando também os aspectos rítmicos do samba, que desde o samba orquestral dos anos 50 haviam se diluído.
No que toca à questão literária, a Bossa Nova realiza uma mudança de ordem estética. Os poemas das canções, sobretudo no tema amor, tratam das situações de maneira mais feliz e coloquial, menos parnasiana, resgatando a naturalidade contida outrora em Noel Rosa.
Eclodem os anos 60
A partir dos anos 60, começam a chegar ao Brasil a música e a arte pop, representadas sonoramente pelo rock’n’roll. Rapidamente, essa nova música, que estava ligada a uma mudança de comportamento social dos jovens, ganha adeptos no Brasil. Seus seguidores são identificados a partir do movimento da Jovem Guarda.
Agora, uma guitarra aliada a recursos eletrônicos de distorção sonora é que se faz presente. Poeticamente, tratavam de valores buscados pela juventude: a beleza, a ascensão social por meio da aquisição de um automóvel, uma postura “sem compromissos” diante das responsabilidades que se lhes apresentava, enfim, queriam romper com tabus que havia muito norteavam a conduta da juventude, principalmente a sexualidade.
Música de Protesto
Na mesma época, o Brasil era assolado por um golpe militar de direita contra o qual toda a intelectualidade ligada à esquerda se mobilizou. No campo artístico, passa a ser produzida uma música que protesta ante a situação que se configura. Essa música, na produção de alguns de seus principais compositores, começa a trazer a musicalidade de um Brasil mais ligado ao interior, ao camponês e às camadas sociais menos favorecidas. É a música ligada aos Centro Populares de Cultura (CPC). Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Carlos Lira, Marcos Valle, Sidney Miller e Sérgio Ricardo são compositores que se destacam nesse momento.
A juventude intelectualizada do Brasil olha com desprezo para a música produzida pela outra juventude, mais operária, mais suburbana. Nessa época, convivem no cenário musical a música da Jovem Guarda, da Bossa Nova, a Canção de Protesto.
Havia também alternativas mais sofisticadas que fundiam recursos bossa-novistas com temáticas interioranas, partindo assim para uma estilização de ritmos populares, como o baião – Edu Lobo é um exemplo dessa vertente. Aos poucos, a música popular brasileira ia manifestando a sua ubiqüidade.
Alegoria, Paródia e Deboche
Em 1967, surge um movimento de artistas baianos e paulistas intitulado Tropicália, que visava, por meio de alegoria, paródia e deboche, a promover uma autocrítica que implodisse a já assim chamada MPB como um campo consolidado em sua “linha evolutiva”. Esse movimento, de bases intelectuais sólidas, propõe uma nova visita à Jovem Guarda autenticando alguns de seus elementos. Funde o som das guitarras distorcidas ao som orquestral, resgatando a musicalidade contida nos recônditos do Brasil. Propõe uma nova estética literária, mais ligada ao concretismo e não tão próxima de uma abordagem política explícita. Passam a utilizar o ruído (música concreta) como recurso sonoro.
A Tropicália abriu caminho para diversas tendências presentes na música brasileira ocuparem o seu lugar, de modo que tudo passou a fazer parte do novo conceito de MPB.
E, dentro da imensa diversidade sonora produzida até então, o Clube da Esquina reposicionou o espaço da MPB, certificando com qualidade a incorporação dos diversos elementos propostos pela Tropicália e outros movimentos.
Milton Nascimento
Em 1967, Milton Nascimento classificou três músicas – duas próprias e uma com letra de Fernando Brant – para a final do II Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Milton é premiado como melhor intérprete e ganha o segundo lugar com “Travessia”. A partir daí, a carreira de Milton é impulsionada.
Ainda em 1967, ele grava seu primeiro disco, “Travessia”. Em 1968, é convidado a gravar o disco “Courage” nos EUA. O convite revelou o imenso potencial de aceitação de sua música nos EUA. Em 1969, grava no Brasil o disco “Milton Nascimento”. A cada novo disco, Milton se supera como intérprete, como compositor e como instrumentista.
Um novo caminho para a MPB
Em seus três primeiros discos, Milton se apóia na experiência de grandes músicos como Luiz Eça e Dori Caymmi. Isso, por um lado, dá sustentação a seu trabalho e, por outro, faz com que ele mantenha uma sonoridade mais próxima da já existente, reservada aos grandes compositores e intérpretes da MPB.
Não obstante toda a musicalidade dos jovens do Clube, era visível que a sofisticação e os recursos dos elementos sonoros trazidos pela Bossa Nova permaneciam como referência de qualidade da MPB no exterior.
Porém, é em seu disco “Milton”, de 1970, que Milton e os rapazes do Clube da Esquina passam a trilhar um caminho sonoro totalmente próprio, autêntico e mais independente do passado da música brasileira. Esse disco tem como banda de apoio o Som Imaginário, mais Lô Borges e Naná Vasconcelos. Nele, o Clube se faz mais presente nas composições dos irmãos Lô e Márcio Borges e da sonoridade que funde recursos diversos existentes na MPB – como guitarras distorcidas – e inovações – como o uso determinante da percussão na música “Pai Grande”.
A percussão não faz mais o papel de acompanhante rítmico: agora é a de criadora de um evento que corre concomitantemente à voz e ao violão e com um volume maior que o usual das gravações.
O Disco Clube da Esquina
A consolidação de uma linguagem própria se firma com o lançamento, em 1972, do disco “Clube da Esquina”, assinado por Milton Nascimento e Lô Borges. Esse álbum duplo traz a participação maciça de todos os membros do grupo de amigos músicos conhecido internamente como Clube da Esquina.
A sonoridade obtida, o alto padrão de elaboração e a originalidade das composições e arranjos fizeram deste um dos discos antológicos da MPB. A música do Clube da Esquina trouxe diversos elementos novos à MPB, que, com o passar do tempo, se tornaram matéria de uso comum.
Diferentemente da Jovem Guarda e da Bossa Nova, mantiveram uma temática política presente, mas de forma subjetiva. O disco “Milagre dos Peixes” teve que ser feito, em grande parte, à base de vocalises, devido à censura de várias das letras.
As letras das canções em geral revelam uma inclinação a construções mais abstratas, imagens ou metáforas que talvez sejam mais soltas de uma tradição poética da canção brasileira que as costumeiras da época, e mesmo depois. Pouco se encontra da estrutura de romance ou de narrativas, histórias ou situações das quais se pode tirar alguma moral ou mensagem. Acerca disso, há uma interessante afirmação que sintetiza um pensamento literário, no caso de Márcio Borges, mas que em alguma medida pode ser estendido a outros poetas do grupo em suas letras: “Pelo menos não viessem me falar de mensagens... ‘qual é a mensagem dessa letra?’ Como se um poema pudesse funcionar como cabograma ou sinal de fumaça”.
Uma Nova Perspectiva Musical
Milton inaugura uma nova forma de utilização do violão: como um instrumento ao mesmo tempo harmônico e percussivo. No samba e na bossa nova temos um violão batido dentro de um esquema rítmico. Na Tropicália e Jovem Guarda, a utilização do instrumento é feita de forma rasgueada (ou rasgada ou rasqueada é tocar violão passando os dedos ou a palheta pelas cordas correndo, de cima para baixo ou vice-versa, fazendo as cordas soarem; é uma forma não dedilhada de tocar violão), porém ainda respeitando um sistema rítmico predominante. Em Milton, poderíamos dizer que o violão passa a ser um instrumento arrítmico e de cordas percussivas.
Toda a base da música brasileira foi construída dentro de padrões rítmicos binários, ternários e quaternários. Milton desenvolve músicas em compassos quinários (em cinco tempos), além de trabalhar com compassos híbridos (pulsações diferentes numa mesma música). E também a execução de um samba, originalmente binário, em ritmo ternário.
Constróem a ponte com a música de nossos irmãos americanos de língua espanhola. Acabam por resgatar uma África que não veio pela via do samba e nem do candomblé. Trazem uma África mineira, irmã dos congados, moçambiques e caiapós e tambus.
A percussão passa a ter um papel de solista concorrente ao melopoema (o resultado da melodia e letra, a canção). É um evento que acontece à parte do resto sem, no entanto, deixar de compor o todo. São os primeiros a colocar, em algumas canções, a percussão com um volume maior que a própria voz.
A voz, no Clube da Esquina, deixa de ser apenas o elemento que canta os melopoemas e passa a ser um instrumento que canta sem letra, que produz sons pouco usuais. O falsete, por exemplo, longe de ser um último recurso, torna-se alternativa tímbrica.
Conseguem também fazer a fusão do regional com o pop amalgamando os gêneros e estilos. Ouvindo não conseguimos localizar onde começa um e termina o outro. Esse procedimento passa, tempos depois, a ser usual em um segmento chamado World Music.
Criam uma sonoridade orquestral própria que diferia da forma como a Bossa Nova utilizava a orquestra, mais como uma moldura sonora, e da forma como a Tropicália também a utilizou, de forma mais narrativa. No Clube da Esquina temos uma orquestração de caráter mais impressionista, criadora de ambiências sonoras, e que às vezes corre à parte do evento musical que se apresenta.
No disco “Clube da Esquina”, vemos a proposta inusitada de dividir o panorama de escuta do som estereofônico de forma não eqüitativamente balanceada.
Poderíamos pensar no desenvolvimento da harmonia de música popular (progressões harmônicas, dissonâncias etc.) ao longo dos tempos por um caminho que vem de Mussorgsky, Debussy, música de cinema, big bands, simultaneamente, música brasileira e música estadunidense do pós-guerra e Bossa Nova.
Se analisarmos a obra do Clube da Esquina, veremos que, além da incorporação de toda a contribuição trazida pelo desenvolvimento acima exposto, foi criada pelo Clube uma maneira muito própria de harmonizar, visível a partir do disco “Clube de Esquina”. Não é à toa que o violão de Toninho Horta se tornou referência e as harmonias de Milton são as mais surpreendentes.
A sonoridade resultante do encontro desses músicos se tornou uma das principais marcas que acompanhou a música feita pelo pessoal do Clube da Esquina. Uma música em que os instrumentos, combinados, constróem mais do que um simples acompanhamento da canção. Constróem, sim, uma ambiência da qual a canção passa a fazer parte junto de eventos sonoros distintos que acontecem ao mesmo tempo. Como exemplo, vale passar os olhos nos comentários feitos acerca do disco Clube da Esquina.
A influência da música do Clube da Esquina se espalhou por diversos lugares e tendências. Um dia, em conversa informal com Ivan Lins, sugeri que a música de Gonzaguinha continha elementos melódicos presentes na música de Milton, ao que ele me respondeu que não só a de Gonzaguinha, mas a dele também, e frisou: “Milton e Jobim, aprendi muito tocando músicas desses dois”. A influência de Milton e de Toninho Horta, na maneira de compor e tocar a guitarra, é notória na música de Pat Metheny. A própria aproximação de Egberto Gismonti e de Wayne Shorter, que gravaram músicas de Milton, da obra deste, denota a força do trabalho dos mineiros.
Ivan Vilela é músico, professor da USP, diretor da Orquestra Filarmônica de Violas e pesquisa festas ligadas à cultura popular, viola caipira e MPB. Ele prepara um livro sobre o Clube da Esquina e sua contribuição à Música Popular Brasileira.
Fonte: http://www.museudapessoa.net/clube/o_movimento.htm
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